25 de maio de 2008

Entrevista - Nascer na Holanda parteira Mary Zwart

"Mulheres que se sentem cuidadas e se sentem como mulheres, em vez de pacientes submetidas a procedimentos médicos, proverão e darão melhor apoio às suas famílias da mesma maneira que assim o farão os companheiros que são escutados e cuidados"
Mary Zwart
Mary Zwart é uma parteira holandesa independente, graduada na Escola de Parteiras de Amsterdã em 1969. Recebeu o treinamento em enfermagem no Hospital Acadêmico de Leiden. Após viagens, realizou atendimentos particulares de 1973 a 1996 na Holanda. Então, se envolveu em mudanças na Europa Oriental e na Rússia. Desde 2000, participa do Movimento de Humanização do Parto no Brasil. É fundadora da Escola Perinatal Européia, bem como membro do Fórum Europeu de Cuidados Primários, representante internacional da Iniciatiava Amiga da Mãe e do Bebê (MotherBabyFriendly Care Iniciative). Desde 2006, está envolvida em mudanças nos cuidados perinatais em Portugal. Mary adora ensinar parturição internacionalmente e recentemente voltou a atuar. Ela é casada, mãe de 5 filhos e avó de 5 netos.
Conheci Mary Zwart, no Recife, em fevereiro de 2007. Ela apresentava em uma palestra o modelo holandês de atenção ao parto. Este modelo serve como base para uma reflexão sobre nós: como percebemos, lidamos e vivemos a gestação e o parto em nossa sociedade, bem como sobre a forma da organização do nosso sistema de saúde. Valorizamos a instituição médica e seguimos protocolos desatualizados no que diz respeito às evidências científicas. Devido a importância dessas informações, para que nós, mulheres, comecemos a refletir, questionar e mudar a situação atual, solicitei uma entrevista com ela. Como estávamos no período carnavalesco, terminamos por nos desencontrar. Mas, após desencontros, conseguimos conversar por email durante os meses de março e abril de 2007.
Abaixo, um pouco sobre ela, seus conceitos e seu trabalho.
PP - Por que você escolheu ser parteira?
Mary Zwart - Quando acabei o colegial, eu queria ter uma profissão médica que me fizesse independente e empreendedora. Eu disse a meus pais que queria me tornar uma parteira, mas, mesmo na Holanda, naquela época, esta era uma profissão que estava se extinguindo. Então, eles me aconselharam a me tornar uma fisioterapeuta: ter meu próprio negócio, trabalhar das 9 às 17 e ter uma boa renda. Eu os escutei, mas depois de um ano eu pedi a eles: "por favor, deixem-me ser uma parteira!".
Eu comecei a freqüentar a escola, o que foi pior do que um semi-internato naquela época, e me tornei parteira três anos depois. E como aquilo me fez me sentir bem!
Mas olhando ao meu redor e vendo que internacionalmente se começava a educar enfermeiras-parteiras, eu fiz o curso de enfermeira e tive o "desconto" de um ano. E então eu fiquei com duas profissões.
Eu treinei como parteira substituta durante os estudos de enfermagem e comecei a viajar para ver o mundo e verificar como o trabalho de parteira acontecia no Oriente Médio e nos Estado Unidos.
Então eu comecei minha própria "prática"1, o que é um procedimento normal na Holanda. Eu fiz um empréstimo no banco e comprei a prática em 1973 por 40.000 florins, o que era o equivalente ao rendimento de um ano.
Por ser uma profissão liberal, é possível comprar seu negócio e pegar um empréstimo no banco para fazer isso. No caso da parteira, você compra o nome (reputação) de uma parteira que pára de trabalhar e espera que as grávidas procurem você. Você também pode simplesmente começar avisando que está disponível como parteira, mas leva uns dois anos até você construir "sua clientela" e isto também custa muito.
Para se formar você precisa de seu diploma e para se qualificar você precisa de uma quantidade de trabalho anual e manter uma educação continuada através de cursos de pós-graduação.
Comecei em meados de junho e tive meu primeiro dia no final de agosto: sem problema. Eu curti todos os dias.
Existem diferentes parteiras: as que atendem os bebês e as que atendem as mães. Eu sou do último tipo: adoro dar suporte para o rito de passagem da mulher e para mim bebês são bebês.
1 No original "practice", que seria uma espécie de consultório, que você pode comprar o "renome"/clientela de outra parteira. Como não há tradução para este termo, colocamos "prática".
PP - Há quanto tempo você é parteira?
Mary Zwart - Sou parteira desde o dia em que eu comecei os cuidados como parteira e espero continuar sendo até o dia em que eu morrer.
Eu comecei como parteira em 1969 e meu último parto foi em março de 2006. Atualmente existe uma mulher que me quer como parteira e sua data provável de parto é no final de junho. Então, são uns 38 anos como parteira.
Eu vendi minha prática (consultório/renome) para minha sucessora, passei a substituir uma parteira que queria sair de férias e ultimamente tenho trabalhado para diminuir a carga de trabalho de três colegas. Então, quando elas querem uma folga, eu trabalho para elas.
PP - O que você sente quando está atendendo um parto?
Mary Zwart - Eu adoro ver a mudança da mulher para mãe. Mesmo com bebês natimortos. Mesmo quando os bebês nascem mortos as mulheres se tornam mães. Eu tive a honra de ver essa mudança acontecendo muitas vezes e ajudei em torno de 4.000 bebês a vir ao mundo. Eu sempre me senti grata por ter sido convidada para este milagre diário.
PP - Em relação ao atendimento na gravidez, parto e pós-parto na Holanda, quando a mulher descobre que está grávida, que procedimentos ela toma?
Mary Zwart - As mulheres começam o pré-natal quando entram em contato com a parteira por volta das 8 semanas de gravidez. Na maioria das vezes, elas mesmas fazem o teste de gravidez. As consultas começam às vezes antes da concepção, mas quando não há nenhuma razão médica, elas são atendidas regularmente da 10ª até a 42ª semana.
PP- Como funciona o atendimento à gestante na Holanda? Como é o acompanhamento pré-natal? E após o parto?
Mary Zwart - O padrão de atendimento na Holanda é o parto domiciliar com parteira para todas as grávidas. Não existe essa coisa de público e privado. Todos têm seguro e quando não têm, porque são imigrantes ilegais, por exemplo, os custos da parteira e do obstetra, quando necessário no caso de complicações, são cobertos pelo Ministério da Saúde. A mulher pode ir ao hospital com a sua própria parteira, porque ela quer ir, mas nesse caso ela terá que pagar uns 300,00 Euros pelos serviços hospitalares.
No caso de razões médicas, não há custos hospitalares. Pode ser um problema em seu histórico, como hemorragia pós-parto. Neste caso, ela tem a assistência de sua parteira, mas conta com o hospital como suporte. Em outros casos, ela será transferida para o obstetra, que ficará responsável.
No pós-parto, ela receberá a visita da parteira durante o período de repouso umas 4 ou 5 vezes durante a primeira semana para ver se a mãe e o bebê estão bem e para ajudar no aleitamento materno. Uma enfermeira dá apoio à mãe e à família durante uma semana por pelo menos 3 horas por dia.
O check-up final, 6 semanas após o parto, é realizado para ver se a mãe e o bebê estão indo bem e também se existem sinais de depressão pós-parto ou problemas médicos ou físicos. Na maioria das vezes também conversamos sobre planejamento familiar e sobre a vida sexual da mulher.
PP - No caso da escolha pelo parto domiciliar, o que é necessário para sua realização?
Mary Zwart - Para ter um parto domiciliar as mulheres gostam de preparar um ninho agradável. Geralmente durante a gravidez o quarto é reformado e o quarto do bebê preparado. Para o parto, elas obtêm de seu seguro materiais descartáveis e outras coisas necessárias ou compram na farmácia.
PP - Os custos do atendimento à gestante é coberto pelo governo? Há planos de saúde particulares? A parteira e o parto em domicílio são cobertos pelo governo?
Mary Zwart - Na Holanda, a parteira é uma profissional independente que fornece cuidados médicos e que faz um contrato com a mulher que ela atende. Se você não é querida pelas mulheres você logo sai do negócio e fica sem renda alguma. A mulher é reembolsada pelo seu seguro.
PP - Pelo que venho lendo, há um baixo índice de intervenções nos partos realizados na Holanda, incluindo a episiotomia e a anestesia. Como as mulheres holandesas lidam com a dor? Que técnicas vocês usam?
Mary Zwart - Para partos de baixo risco, tricotomia e enemas não são mais usados. Existe uma crescente demanda para o alívio da dor, contudo os anestesistas não conseguem atender a essa demanda. Então, as parteiras normalmente convencem as mulheres a não utilizar anestesia.
Durante o trabalho de parto elas andam, comem o que querem, tomam banho de chuveiro ou de banheira e administram a dor do trabalho de parto se movimentando, geralmente com o suporte do seu companheiro.
Em relação aos recém-nascidos, a Vitamina K é dada oralmente e apenas em casos de partos artificiais é dada por meio de injeção. Nos olhos não são pingadas gotas, nem de antibióticos nem de nitrato de prata.
PP - O que você acha do uso rotineiro de episiotomia? O que sua experiência diz em relação a essa intervenção?
Mary Zwart - Eu acho que a taxa de episiotomia na Holanda é muito alta: em torno de 20%. Porque a única razão para cortar é a asfixia do bebê. Mas algumas vezes é muito difícil ter a paciência de não fazer nada.
PP - Com que conceito de corpo e saúde vocês, parteiras holandesas, trabalham? Como é visto o processo de gravidez e parto?
Mary Zwart - Gravidez e parto são parte da vida e não um procedimento médico, tal como ir ao dentista e ter o dente arrancado. É parte de se tornar uma mulher adulta e assumir a responsabilidade pela criança. Esta importante mudança torna a mulher um membro amadurecido da sociedade. Se essa mudança acontece de uma maneira boa, de um jeito que ela goste, ela aceita essa tarefa com alegria e a família se beneficia com isso.
Nos dias de hoje, na Europa, uma em cada três mulheres sofre de depressão pós-parto. Imagine o que isso acarreta para as crianças e para as relações sociais.
Toda a gravidez é sinal de saúde da mulher. Quando a gravidez se desenvolve, a parteira verifica se a mulher e seu corpo podem lidar com a gravidez. Disfunções, tais como pressão alta, incompetência da placenta, gêmeos, são consideradas de médio ou alto risco e o papel da parteira é fazer uma triagem: você é de baixo risco ou você precisa ir ao hospital ou a um obstetra.
A escolha deveria ser pelo parto normal porque é assim que a vida é. Os melhores resultados são por parto vaginal. Cesárea planejada oferece maior risco para a saúde da mãe e do bebê numa gravidez de baixo risco.
Seu direito é ter neste período o suporte de profissionais preparados mais para um apoio social que médico. Por isso a parteira tem que ter um treinamento profissional para que ela possa estabelecer o diagnóstico de gravidez de risco, sabendo que 80% de todas as gravidezes e partos são um evento social e não um procedimento médico.
PP - Fale um pouco mais da realidade holandesa.
Mary Zwart - Mulheres ficam grávidas e são feitas para dar à luz a bebês. O que eu disse foi dar à luz e não "entregar bebês". Aqui está uma diferença significativa.
Na Holanda uma em cada três mulheres dá à luz em casa com a sua própria energia e apoiada pelo parceiro, parteira e enfermeira. Apenas 30% das mulheres são assistidas por um obstetra e uma enfermeira no hospital. A taxa nacional de cesáreas é 14%. Os outros 30% das mulheres dão à luz no hospital por escolha e são acompanhadas pela parteira e por uma enfermeira do hospital.
As mulheres que deixam o hospital recebem em casa o suporte de uma enfermeira por no mínimo 48 horas em 8 dias e visitas de sua parteira. A taxa de mortalidade perinatal é 7/1000. O dinheiro gasto é aproximadamente um décimo do que é gasto nos Estados Unidos.
PP - Como explicar essa diferença de atitude?
Mary Zwart - A educação sexual começa cedo na Holanda e pelo menos 30% dos adolescentes são sexualmente ativos na época do ensino médio. As mais altas taxas de contraceptivos orais são usados na Holanda e a porcentagem de mães adolescentes e a taxa de abortos é uma das mais baixas do mundo. Orientações sobre doenças sexualmente transmissíveis são disponibilizadas gratuitamente e programas sobre procriação são oferecidos nas escolas desde o jardim de infância.
As mulheres querem dar à luz como resultado de uma vida afetiva que começou em casa e elas querem fazer isso da maneira mais normal possível. Publicamente não há discussão sobre vaginas alargadas pelo parto. Quando você questiona esse aspecto, a maioria das mulheres diz que a vida sexual se tornou melhor após o parto.
PP - Como você começou a se envolver com o movimento de humanização do parto no Brasil?
Mary Zwart - Eu deixei minha "prática" em 1996 e comecei a ser uma parteira substituta novamente porque eu me envolvi com a causa da reintrodução do modelo de cuidados oferecidos pela parteira, iniciando as mudanças nos países da Europa, e desde 2000 na Rehuna.
PP - O que você acha da realidade brasileira, principalmente da rede privada, onde 80% dos nascimentos são por meio de cesarianas?
Mary Zwart - Para o Brasil é ruim que 80% dos bebês nascidos em hospitais privados sejam através da cesariana porque isso dá a impressão de que quando você é pobre você sofre com o parto e quando você tem dinheiro é mais fácil.
PP - O que o país perde com isso? Quanto economizaríamos se mudássemos essa realidade, se tivéssemos um atendimento à gestante mais humanizado e menos intervencionista?
Mary Zwart - O governo agora dá a toda mulher o direito de ter epidural. Pense em todo o dinheiro gasto com cortes (episiotomias) desnecessários, cuidados ineficazes e intervenção sobre intervenção. Na Argentina, realizaram uma pesquisa sobre a quantidade de dinheiro gasto com episiotomias desnecessárias . Trinta mil dólares num país onde hospitais públicos nem sempre têm comida para oferecer aos pacientes ou água quente nos chuveiros.
Teria sido melhor ter oficinas (workshops) para construir equipes com obstetras, parteiras e enfermeiras para o melhor atendimento e cuidados da mulher e se criar uma infra-estrutura na qual o parto na comunidade, num centro de parto (casa de parto) ou em casa, fosse normal, e que a mulher pensasse no parto como uma experiência enriquecedora em vez de uma experiência dolorosa e desagradável. O dinheiro pode ser gasto com moradia, água limpa e educação, o que irá empoderar as mulheres, e com elas as comunidades nas quais vivem.
PP - Na sua opinião, como as mulheres devem agir para mudar esse panorama?
Mary Zwart - Saber o que você quer. E como agora elas pedem por cesarianas, é necessário mostrar a elas seus riscos e exigir apoio do profissional para ter um parto normal. Solicitar que seu médico ou médica se guie por práticas baseadas em evidências. Ser politicamente ativa.
Júlia MorimMãe de Maria (nascida em casa), Antropóloga e Doula